quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

A infância - Cecília Meireles - Rio de Janeiro, Diário de Notícias,20 /12/1930

Nós somos a saudade da nossa infância. Vivemos dela, alimentamo-nos do seu mistério e da sua distância. Creio que são eles, unicamente, que nos sustentam a vida, com a essência da sua esperança.
As aspirações que nos animam hoje - pensemos um pouco - são transfigurações daquelas de outrora, quando não podíamos ainda agir sozinhos, e andávamos apressando a vida, querendo atingir bem cedo a liberdade dos nossos desejos e a fórmula estrutural da nossa personalidade. São as mesmas de então, com outros nomes, às vezes, com a roupagem um pouco mudada, às vezes, desconhecidas aos nossos próprios olhos, que as esqueceram.Transferimo-las para quando fôssemos grandes...E o tempo que decorreu com essa transferência foi-se embebendo de circunstâncias que as transformaram; nada mais.
As coisas que nos impressionaram vivamente quando ainda não podíamos definir os motivos da nossa surpresa e da nossa admiração, quando nem sabíamos distinguir nitidamente essa admiração e essa surpresa, deitaram raízes obstinadas nas mais profundas regiões subjetivas ; depois foram sendo elaboradas lentamente, e vieram à tona em dias inesperados, afluindo, muitas vezes, em fragmentos - porque há sempre mãos impiedosas, concretas ou abstratas, pairando sobre os destinos humanos...
Somos, assim, um outrora que se faz presente todos os dias, não porque o presente seja a sua forma desejada como definitiva, mas porque é a transição a que a natureza submete tudo quanto transborda para mais longe, no tempo, e o crivo em que é vertido o passado que se faz futuro.
Nós temos a nossa infância conosco. E ela conosco morrerá, se acaso não ficar sendo a decoração de alguma sobrevivência  que nos aguarda para lá da morte.
Temos as paisagens da nossa infância imortalizadas em nós; e os vultos que por elas transitaram, e as palavras que então floresceram, e o ritmo e o aroma que animavam cada aparência tornada confusa e obscura pelo tumulto das épocas seguintes.
Falamos da família como de uma afeição que cresce todos os dias, com a consciência da nossa sentimentalidade. Eu creio que amamos os que se fixaram na inconsciência da nossa sensibilidade, que se incorporaram à nossa vida ideal, que foram as formas dóceis aos milagres da nossa imaginação, e os enfeites de esperança que estiveram na nossa alma de crianças, acesos como candelabros...
Falamos de pátria como de um conceito claro, como uma consequência de todas as nossas noções de responsabilidade e de todas as aquisições da nossa experiência de adultos.Eu creio mais na pàtria formada pelo conjunto das benquerenças antigas acumuladas em nós com esse amor indizível com que a infância coleciona pequenas coisas de beleza, e pequenas realidades sem valor, - elementos constitutivos dos seus domínios posteriores.
Integramos em nós a vida que nos rodeia quando somos pequeninos: absorvemo-la em todos os seus aspectos. E, assim, fundamentamos a nossa personalidade, tão difícil de alterar depois, quando os elementos perderam a sua plasticidade primitiva e adquiriram relativa consistência.
Se procurarmos bem, encontraremos vestígios de um desgosto que nos manchou de tristeza para sempre, de uma injustiça que nos transmitiu certo mal sem remèdio, de uma alegria que nos estimulou para entusiasmos novos, de uma ternura que determinou a flexuosidade afetiva da nossa existência...Lá longe na infãncia é que habitam esse desgosto, essa tristeza, essa alegria, essa ternura. porque só nos interessa o inédito...O que veio depois não trouxe mais surpresa; o que veio depois só influiu em nós se, por sua natureza, não pode habitar na infância; foram, nesse caso, conquistas da adolescência, essa segunda infância da vida.
Nós todos desejamos uma humanidade melhor.Olhemos para as crianças de hoje não apenas com inútil carinho, mas com elevação e inteligência.