sábado, 7 de julho de 2012

Como memorizar um conto? Gislayne Avelar Matos

     Para um contador de histórias, memorização não é sinônimo de "decoreba", que significa aprender de cor, sem assimilar.
     O grande segredo dos bons contadores está na perfeita assimilação daquilo que pretendem contar. Assimilação no sentido de apropriação. Apropriar-se de uma história é processá-la no interior de si mesmo. É deixar-se impregnar de tal forma por ela que todos os sentidos possam ser aguçados e que todo o corpo possa naturalmente comunicá-la pelos gestos, expressões faciais e corporais, entonação de voz, ritmo etc.
     Isto é possível através do processo de identificação com as situações apresentadas pela história e com seus personagens, sejam eles humanos ou não - nas fábulas, por exemplo, os animais se comportam como seres humanos para ensinar algo.
     Para se exercitar nesse processo, o contador pode se fazer algumas perguntas em relação à história que pretende contar. Isso o ajudará a compreender sua escolha por uma determinada história. É evidente que existem muitas razões para escolhermos o que queremos contar, e o fato de refletirmos sobre isso só contribui para aumentar o prazer que podemos desfrutar ao narrar uma história bem escolhida.

Perguntas possíveis:

-Em que a trajetória desse personagem se parece com a minha?
-Com suas fraquezas e sua força, esse herói se parece comigo?
-Já vivi uma situação semelhante a essa que vivem os personagens desse conto?
-A trama apresentada nessa história chama minha atenção de maneira especial?
-Essa história me intriga e me atiça a curiosidade?
-Essa história me propõe reflexões interessantes?
-Essa história me dá prazer por seu aspecto cômico?

     Recorrendo à própria história, digo à memória e analisando-se um pouco, o contador poderá perceber o quanto existe de semelhança entre as experiências que ele vem adquirindo ao longo de sua vida e a trajetória dos personagens de um conto.
     Através desse processo de identificação e de empatia com os personagens, o conto a ser narrado deixa de ser apenas interessante, engraçado ou o que quer que seja, para transformar-se também num meio de compartilhar com sabedoria, humor e sutileza as próprias experiências de vida.
     A história em questão passa a ser de alguma forma a "sua  própria história, contada à maneira do conto popular". E quem melhor que "o dono do peixe" para vendê-lo a bom preço?
     Além de compartilhar experiências, o contador também compartilha sonhos. Porém, não se compartilha aquilo que não se possue. É necessário apropriar-se também dos sonhos de um herói, torná-los os seus próprios, para só então oferecê-los aos ouvintes.

O ofício do contador de histórias  -  Gislayne Avelar Matos e Inno Sorsy

terça-feira, 3 de julho de 2012

A palavra poética dos contadores de histórias - Gislayne Avelar Matos

     Os contadores de histórias são guardiões de tesouros feitos de palavras, que ensinam a compreender o mundo e a si mesmos. Eles semeiam sonhos e esperança. São carinhosamente chamados de "gente das maravilhas" pelos árabes.
     Eles contam histórias de príncipes e gênios do mal, animais encantados e heróis que passam por difíceis provações para merecer a princesa, de velhos sábios e de bruxas, de animais que falam e agem como os humanos.
     Coisas como essas são estranhas à nossa contemporaneidade - frenética, tecnológica, barulhenta e acesa a néon - , em que a necessidade é comunicar de forma cada vez mais rápida e sofisticada e o desejo pelo novo é insaciável.
     No entanto, a velha e boa palavra dos contadores de histórias não parece obsoleta. Eles sabem disso, sabem que o mundo vai e vem. Foram as próprias histórias que lhe ensinaram. Se há épocas em que os ouvidos e os corações se fecham para o mágico e o poético, outras, entretato, encontram o homem pronto a se encantar novamente.
     Talvez estejamos vivendo mais uma dessas épocas, o que explicaria o retorno dessa "gente das maravilhas".
     Sua grande tarefa tem sido, desde sempre, preservar um tipo de conhecimento armazenado em forma de histórias, que eles contam e continuam a contar enquanto houver ouvidos prontos a escutá-los. Assim, cuidam para que o bem maior dos seres humanos, a capacidade para se humanizar, não se perca.
     Nos últimos tempos, eles conquistaram um espaço significativo na cena urbana. Mas como consequência da horizontalização da palavra oral na sociedade contemporânea, concomitantemente uma enorme confusão se formou em torno de sua prática, e muitos outros artistas da palavra vieram se confundir com eles.
     Isso se evidencia sobretudo, por ocasião dos festivais de contadores de histórias, nos quais se inscrevem também o ator que interpreta o texto literário de um autor, o artista que desenvolve  uma performance teatralizada de um conto de tradição oral, o contador de causos, o contador de piadas.
     É premente, então, primeiro delinear os contornos da "palavra" do contador de histórias para verticalizá-la, de uma maneira que possa ser reconhecida como única.
     Insistimos no termo "delinear contornos" em oposição  a formular definições, classificar ou tipificar, termos que nos remetem a uma precisão e a uma clareza que não pretendemos encontrar nessa palavra.
     O contador de histórias Michel Hindenoch pondera:
    
Nosso mundo hoje tem um problema com a crença: ele quer saber tudo. É nessa medida que a arte me parece uma alternativa `a ciência: salutar, salvadora, fecunda, indispensável à nossa felicidade de estar no mundo, inteiros... (2001: 303-4).

     Cremos justas as palavras desse contador de histórias e nelas nos respaldamos para justificar essa opção de tratar a palavra do contador com uma certa "cerimônia', depreendendo dela o que nos é possível, mas sem tirar-lhe os véus a golpe de força reducionista, em prol da clareza científica.




Matos, Gislayne Avelar
A palavra do contador de histórias: sua dimensão educativa na contemporaneidade/ Gislayne Avelar Matos.-São Paulo: Martins Fontes, 2005.