segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Arte e educação - Cecília Meireles

Rio de janeiro, Diário de notícias, 19 de novembro de 1932

Um instante de beleza pode causar a transformação total de uma vida. Basta que a ação se produza com aquele ritmo e aquela proporção que tornam as coisas adequadas e determinam esse ajustamento harmonioso e surpreendente que os homens se acostumaram a chamar pelo nome de milagre.
As grandes obras de arte foram sempre um milagre. Diante delas vêem-se os homens mais hostis converterem-se de súbito: o êxtase é um indício dessa mudança brusca, em que se paralisam todas as energias bárbaras, e o espírito aflora, só com as suas virtudes requintadas, à contemplação do prodígio, que de certo modo o reflete.
Tudo quanto  se tem escrito sobre o poder da arte, nessa transfiguração humana, não é apenas  matéria mitológica ou poética.
Aliás, a mitologia e a poesia  são tudo quanto há de mais verdadeiro, transposto numa linguagem de símbolo que, infelizmente, nem todos chegam a compreender com precisão.
Mas, em exemplos mais fáceis, vemos como a arte aproxima as criaturas - e era Tolstoi que vagamente a definia como "a aproximação fraternal dos homens."
Assim é que Paderewsky, malgrado as relações cortadas entre a Lituânia e a Polônia, pediu licença para entrar naquele país, a fim de dar um concerto em Kovno.
Os poloneses que o quiserem ouvir, poderão obter uma licença especial de entrada no país.
É verdade que seria mais belo só esse interesse musical bastar como passaporte; mas já é uma grande coisa que se tenha a cortesia de atender, em tal situação, aos interesados pela arte.
Ela é, aí, uma espécie de esquecimento sobre a contingência triste dos ódios e das incompreensões.
Um esquecimento que poderá ser estimulado cada vez mais, a ver se algum dia se extingue essa vocação, que ainda resta no homem, para a intolerância, a luta e a morte.
Os grandes gênios da arte - como os da ciência - não têm pátria, não têm limites e, malgrado sofram, muitas vezes, do julgamento dos contemporâneos que os reduzem, no seu conceito, à mediocridade mais detestável, sempre sabem estar num ambiente universal que é a sua mais íntima e duradoura satisfação.
Que possuem esses homens de extraordinário? Apenas um dom profundo de beleza, - porque é também beleza a ciência que se faz abolir as dependências entre o individual e o universal.
Se conseguíssemos generalizar a virtude dos grandes homens que a realizam até os homens que as contemplassem como outras tantas obras de arte, modeladas com pensamento e ação, é possível que atingíssemos uma era que apenas se faz prometida, que apresenta faces momentâneas, de volúvel aspecto, sendo, no entanto, uma aspiração tão grande deste mundo cansado de ser belo sem se fazer entender.

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