Rio de Janeiro, Diário de Notícias, 21 de dezembro de 1930.
O interesse pelas crianças é muito relativo, conforme a classe que se observa, mas, infelizmente, em todas elas, domina uma tão absoluta incompreensão dos problemas infantis que eles são sempre mal interpretados, e conduzem quase infalivelmente a soluções tristes e desacertadas.
Não sei como se instalou na mentalidade do adulto o conceito de que criança é um ser de importância secundária, a que se presta estritamente a atenção necessária para não o deixar morrer de inanição.
Observemos o que se passa nas famílias: a mamãe compra os mais belos sapatos para si, os tecidos mais vistosos para os seus vestidos, enfeita os seus aposentos com o maior cuidado. Depois, vai à sapataria, e diz, escolhendo o sapatinho dos bebês:
-Não precisa ser coisa muito boa, não; qualquer coisa serve...É para criança...
Em todas as lojas repete a mesma frase.
E os cantinhos destinados ao bebê são os que não podem servir para os adultos, aqueles em que se amontoam os brinquedos, os papéis, as pedrinhas - o mundo infantil com a sua maravilhosa e misteriosa complexidade...
Mostram a casa às visitas, elogiando os quadros, os paninhos bordados e as plantas das janelas. Quando passam pelo domínio do bebê, ou não dizem nada (meio envergonhadas com a sua existência), ou justificam-no com palavras que revelam toda a distância que as separa de seus filhos:
-É aqui que as crianças brincam...sabe...Não se podem evitar esses cantinhos desarrumados...São o martírio das donas de casa...Mas, quando se tem filhos...
Dir-me-ão que nem sempre é assim. E é verdade, nem sempre. Algumas vezes é pior...Quando os pais resolvem achar os filhos "geniais", nesse sentido de vaidade que é uma das grandes corrupções da infãncia.
Então, aborrecem as crianças à força de as cercarem de todas as coisas que o seu dinheiro lhes pode dar, oferecem-lhes salinhas muito bem arrumadas, com uma porção de coisas inúteis, em que elas não devem mexer, - coisas que estão ali visivelmente para satisfazer os seus interesses, e não os interesses dos pseudopossuidores...
Esse é um dos casos em que a riqueza tem efeitos dos mais perniciosos: acarreta a anulação da personalidade infantil, verdadeiramente sufocada pelo excesso de motivos que a ambientam, tolhendo-lhe a liberdade criadora, sem lhe servirem sequer de experiência a acumular, porque a experiência da criança só se constrói sobre as forças vivas dos seus interesses legítimos.
É contristador ver-se a infância dessa maneira situada, reduzida a uma apêndice da vida adulta, - ela que é a única esperança de um tempo mais belo sobre a terra.
E a todo instante se repetem esses desrespeitos à sua condição - oriundos da ignorância que persiste principalmente nas camadas que com tanta ênfase se denominam a si mesmas cultas e educadas.
Onde eu tenho encontrado mais sensibilidade no trato com a infância, - sensibilidade que chega a ser uma espécie de intuição psicológica, - é nos meios considerados inferiores, onde a cultura e o dinheiro são uma [ palavra ilegível] longínqua...
Talvez por isso mesmo, porque, nele, as vidas se debatem numa espécie de primitivismo original, em que há essa miraculosa inocência do paraíso, e, justamente com ela, uma visão altamente imaginativa da vida sobrenatural, - a criança é um motivo de permanente inquietação, como se representasse um prodígio na alma cheia de espantos dos que a trouxeram à vida. Aí ela é uma espécie de compensação de sofrimento; uma espécie de floração, e de prêmio. Não digo que lhe dêem a atenção adequada. Mas dão-lhe uma atenção especial, e olham-na com outros olhos, que a desgraça e a dor de certo modo transfiguraram, submetendo-os com admiração à visão da vida em marcha.
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